Está em curso no contexto latino-americano o processo de revisão da Declaração de Cartagena de 1984, que, por ser celebrado no marco dos quarenta anos da declaração, é conhecido como Processo de Cartagena +40.1 A Declaração de Cartagena de 1984 trata-se de um dispositivo latino-americano de conceituação, proteção e superação de obstáculos para a proteção de pessoas refugiadas, deslocadas forçadas e apátridas no contexto regional. A cada dez anos, os países da região realizam um processo de revisão da declaração para avaliar os passos dados, dialogar novas propostas de ação e reafirmar a posição de proteção das pessoas refugiadas. O resultado do processo de revisão é a elaboração de um Plano Estratégico Regional composto pela Declaração e o Plano de Ação do Chile 2024-2034 (o plano recebe o nome do país que lidera o processo, neste ano, o Chile).
A Declaração de Cartagena representa para o subsistema regional latino-americano de proteção aos direitos das pessoas refugiadas um importante marco. Na perspectiva internacional, já havia dois dispositivos que versavam sobre a proteção às pessoas refugiadas, a saber, a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 19512 e o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967.3 Contudo, a Declaração de Cartagena inovou consideravelmente em relação aos dispositivos supracitados, porque recomendou a adoção de uma definição ampliada de pessoa refugiada, estendendo a proteção às pessoas forçadas a fugir de seus contextos de origem para além daquelas citadas no âmbito da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951. O caráter inovador se refere ao reconhecimento da situação de refúgio para pessoas originárias de contextos de grave e generalizada violação de direitos humanos.
O Processo de Cartagena +40 está situado em um momento muito peculiar da trajetória dos países latino-americanos. O fluxo migratório venezuelano permanece consistente no cenário regional. Segundo dados da Plataforma R4V4 (Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela), em novembro de 2023, 6.538.756 venezuelanos haviam deixado o país. O Brasil, de 2018 a 2023, passou de sétimo país receptor da população venezuelana para o terceiro país, com mais de 500 mil venezuelanos, superando em números o Equador e o Chile e ficando atrás da Colômbia e do Peru. Ainda no contexto regional, temos a situação do Haiti, que tem enfrentado altos níveis de pobreza e violência sustentada e falta de coordenação interna levando à expulsão de sua população do país. De igual maneira, há um fluxo contínuo de centro-americanos (hondurenhos, salvadorenhos, nicaraguenses e guatemaltecos) e de cubanos buscando melhores condições de vida, especialmente em direção aos Estados Unidos, passando pelo México.
Em termos políticos, a América Latina também tem passado por processos que impactam diretamente nas políticas de migração e refúgio. Em países como Argentina, Peru, Equador, Panamá, Nicarágua e El Salvador há em curso uma virada política com potencial de retrocesso em direitos humanos, garantias e conquistas sociais. Se o espírito de Cartagena sinalizava para uma América Latina solidária e hospitaleira, que enfoca a proteção das pessoas refugiadas, a aproximação pacífica e humanitária aos desafios de proteção, com enfoque em direitos humanos, isso não é o que se verifica na prática. A migração e o refúgio têm sido tratados como questão de segurança nacional e com uma resposta que envolve securitização, militarização e fechamento de fronteiras, deportações/devoluções de pessoas migrantes, arbitrariedade das autoridades na hora de atender às solicitações de refúgio sem respeitar os parâmetros e procedimentos estabelecidos nas próprias legislações locais e falta de transparência na tramitação de processos. Essas ações obrigam as pessoas em situação de deslocamento a buscarem as rotas mais perigosas e com mais riscos ampliando as condições de vulnerabilidades dessas populações.
O Processo de Cartagena +40 conta com três consultas regionais que tem por objetivo reunir representantes dos governos, organismos internacionais, representantes de pessoas refugiadas, defensorias públicas, acadêmicos, empresas e sociedade civil para discutir as questões relevantes para o processo. A primeira consulta aconteceu no México, nos dias 04 e 05 de abril, e tratou sobre a proteção e assistência das pessoas em situação de mobilidade humana e apátridas. Nessa primeira consulta, a Rede Jesuíta com Migrantes esteve representada pela Sra. Karen Pérez, diretora nacional do Serviço Jesuíta a Refugiados (JRS México).5 Na ocasião, Karen apresentou o posicionamento da Rede Jesuíta com Migrantes em vista do processo em curso de revisão da Declaração de Cartagena. Como ela afirmou: é urgente a aplicação do reconhecimento da condição de pessoa refugiada segundo as causas determinadas na Declaração de Cartagena, de maneira sistêmica, integral e não discricionária, reconhecendo a interdependência e a indivisibilidade dos direitos humanos das pessoas solicitantes, com um enfoque interseccional… E agregou: preocupam as políticas de pré-admissão e os acordos de cooperação entre estados de terceiro país seguro ou aqueles que facilitam as devoluções, inclusive em cárcere, violando o princípio da não-devolução.
Tal posicionamento está enfocado em quatro eixos centrais que expressam as preocupações da rede sobre a situação regional e a possibilidade de que a declaração aponte caminhos para respostas efetivas. O posicionamento da rede foi construído a partir das contribuições das obras da Companhia de Jesus que atuam na questão migratória e de refúgio no continente nestes quatro pilares centrais:
– Proteção: que o processo de revisão conduza a uma declaração final que enfoque a proteção das pessoas, reconhecendo a violência generalizada que assola o continente e outras causas como motivo para o reconhecimento do refúgio e o fortalecimento da institucionalidade para a proteção integral.
– Integração: que a declaração reconheça a integração como componente essencial da proteção garantindo a efetividade dos mecanismos de proteção, as ações de integração, a superação da rejeição por meio do acesso a serviços e direitos (entre os quais a regularização documental e migratória) bem como a articulação entre os diversos níveis de governo que atuam na temática.
– Pessoas deslocadas por causa de desastres socioambientais e os efeitos adversos das mudanças climáticas: que a declaração reconheça que as pessoas que se deslocam por essa causa são, principalmente, pessoas marginalizadas, pelo que as obras jesuítas fazem um apelo a que seja uma causa objetiva assumida como motivo para o reconhecimento de refúgio conforme o Espírito de Cartagena.
– Situação do Darien (Panamá): que a declaração reconheça que o Darien é uma crise regional que requer uma resposta como região desde um enfoque de proteção e não de políticas securitárias e militarizadas.
Esse posicionamento da Rede Jesuíta com Migrantes marcará a participação da rede nas ações de incidência local (em cada país latino-americano), regional e nas duas outras consultas que compõem o Processo de Cartagena +40. A segunda consulta, marcada para ser realizada nos dias 16 e 17 de maio, no Brasil, terá como tema as estratégias integrais para soluções duradouras. E a última consulta abordará os deslocamentos forçados por desastres e acontecerá entre os dias 19 e 21 de junho na Colômbia. Como já foi afirmado, o contexto migratório latino-americano exige dos governos uma resposta à altura das exigências que se colocam. E que nessa resposta não se perca a capacidade de proteção, integração e cuidado das pessoas que marcam a tradição humanitária com enfoque em direitos humanos daquilo que se quis com a ampliação dos causais de reconhecimento de refúgio proposto pela Declaração de Cartagena de 1984.
Pe. Jerfferson Amorim, SJ
Relações Institucionais e Sustentabilidade SJMR Brasil
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