Partindo da experiência do Sínodo da Sinodalidade que tem convidado toda a comunidade eclesial a tomar consciência de que comunhão e participação são notas constitutivas da Igreja, o Papa Francisco dirige sua mensagem por ocasião do 110º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado 2024. Deus caminha com seu povo é o tema escolhido pelo bispo de Roma para guiar sua mensagem. Ele o faz recordando que a dimensão sinodal nos permite reconhecer na Igreja a natureza itinerante de povo de Deus em caminho na história, peregrinante – poderíamos dizer «migrante» – rumo ao Reino dos Céus. Nessa imagem, o Papa Francisco vê a própria imagem dos migrantes do nosso tempo, como aliás nos de todas as épocas, uma imagem viva do povo de Deus em caminho rumo à Pátria eterna. A travessia de muitos migrantes, afirma o papa, é uma viagem de esperança na qual, como no relato do Êxodo, do povo de Israel em busca da Terra Prometida, é um deslocamento da escravidão para a liberdade, prefigurando o próprio deslocamento da Igreja rumo ao encontro final com o Senhor.
Com essas duas imagens, do Êxodo e dos migrantes, o Papa Francisco nos faz ver que muitos migrantes partem movidos pela fé e se mantêm no deslocamento sustentados na fé. E disso recorda a afirmação central da vida da Igreja, a certeza de que Deus caminha com o seu povo. Contudo, os rostos das pessoas deslocadas, migrantes e refugiadas, são para todos que com eles se encontram a possibilidade de descoberta de que Deus caminha no seu povo. Sendo assim, cada encontro com um migrante é oportunidade de encontro com o Senhor e ocasião de salvação. Como afirma o Papa Francisco, os pobres salvam-nos, porque nos permitem encontrar o rosto do Senhor (Mt 25,31-46).
As palavras do Papa Francisco chegam até nós no Brasil, em setembro de 2024, em um contexto desafiador. O mês de agosto registrou o aumento do número de ingressos de venezuelanos em nosso país, realidade que tende a se agravar com o cenário pós-eleitoral na Venezuela. Só na pequena cidade de Pacaraima-RR, no mês de agosto, houve a chegada de 12.325 venezuelanos, o que representa um aumento de mais de três mil pessoas em comparação ao mês de junho. A capital Boa VistaRR, que conta com a infraestrutura da Operação Acolhida do governo federal e com o trabalho de outras organizações humanitárias, atende as populações migrantes com bastantes dificuldades.
Outros desafios se apresentam quando olhamos para a resposta do governo brasileiro através do Ministério da Justiça e Segurança Pública, responsável direto pela política de migração no país. No mês de agosto, com o aumento de pessoas solicitando refúgio no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP), o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) decidiu mudar as regras de admissão de migrantes no país. A motivação se deveu à identificação de que o Brasil entrou na rota de contrabando de migrantes. Segundo o MJSP, para garantir uma migração justa, ordenada e segura, decidiu-se que o passageiro em trânsito que não tiver visto de entrada para o Brasil e que tem como destino final um país diferente precisará seguir viagem ou retornar ao ponto de origem.
Essa decisão foi tomada quando o Aeroporto de Guarulhos possuía mais de 550 migrantes aguardando para fazerem a solicitação do refúgio. São, em sua maioria, migrantes provenientes do continente africano e asiático que permaneceram no aeroporto em más condições de saúde, alimentação e higiene. De acordo com nota divulgada pela Defensoria Pública da União (DPU), a nova determinação viola o direito internacional do refugiado, a Lei de Refúgio brasileira e o princípio de nonrefoulement, que proíbe o retorno forçado dos refugiados que os exponha a um risco de perseguição. De igual maneira, a nota afirma que a Lei de Migração brasileira (Lei 13.445/2017) proíbe expressamente a criminalização de migrantes, fazendo notar que a decisão vai no sentido contrário da trajetória de acolhimento e de política migratória com base nos direitos humanos própria do Brasil.
Por falar em política migratória, migrantes e refugiados, organizações da sociedade civil e organismos internacionais têm aguardado com expectativa e preocupação o lançamento da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (PNMRA) do Brasil. Desde a promulgação da Lei de Migração, espera-se a formulação de uma política nacional que regulamente a Lei 13.445/2017. O processo é capitaneado pelo MJSP com o objetivo de consolidar uma política estruturante e continuada para pessoas migrantes, refugiadas e apátridas, inserida nos fluxos e rotinas de atendimento das diversas políticas públicas que contemple, mas também extrapole, as medidas de atendimento emergencial.
Ainda sem o lançamento desta política aproxima-se a 2ª Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia do Brasil (COMIGRAR), que será realizada de 08 a 10 de novembro em Brasília-DF. Entre suas atribuições, além de promover a participação social e política de migrantes, refugiados e apátridas, a conferência deverá propor e discutir diretrizes e recomendações para políticas públicas para pessoas migrantes, refugiadas e apátridas no Brasil. O resultado esperado é a validação de propostas que venham a integrar um plano nacional de implementação da política de migrações, refúgio e apatridia. Sem a PNMRA promulgada e difundida, os delegados e delegadas eleitas para a 2ª COMIGRAR terão sérias dificuldades de elaborar propostas compatíveis com as necessidades das populações com base na política nacional.
Ao celebrarmos como Igreja o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado somos convidados e convidadas pelo Papa Francisco a reconhecer que Deus caminha com seu povo. Se cremos firmemente nessa afirmação de fé, somos chamados a uma resposta firme e decidida de investirmos esforços, presença e recursos para caminhar com as pessoas migrantes e refugiadas e incidir para termos políticas públicas adequadas às necessidades dessas populações. Assim suas viagens de esperança não se converterão em caminho de violência, escravização e morte.
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